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Como o impacto social está presente nos modelos de negócios, pesquisas acadêmicas e movimentos da sociedade civil organizada

Levantamento mapeia organizações sociais no Brasil e revela onde a filantropia não chega

08/11/2023

Eles estão em regiões periféricas, possuem no máximo 10 membros, são movidos por trabalho voluntário e têm na linha de frente mulheres negras, que ainda trabalham fora para levar o sustento para a casa. Organizados principalmente em coletivos, esses movimentos de responsabilidade social podem impactar públicos de até 1000 pessoas e promover profunda transformação nas comunidades, mas muitos deles ainda recebem pouco ou até nada dos recursos destinados à filantropia no Brasil. 

Esse é o retrato das organizações de responsabilidade social nas periferias no Brasil, segundo a pesquisa “Periferias e Filantropia – As barreiras de acesso aos recursos no Brasil”, realizada pela Iniciativa Pipa em parceria com o Instituto Nu, divulgada no início do anos. Ao todo foram mapeadas mais de 1000 ações espalhadas por 5 regiões do país e ouvidos mais de 600 gestores de projetos sociais. O objetivo do estudo é apresentar a realidade financeira dessas organizações, compreender as principais dificuldades que elas encontram para captar recursos e apontar caminhos para soluções.

O coordenador executivo da Iniciativa Pipa, Gelson Henrique, explica que a organização  foi criada em 2019 para ajudar a democratizar o acesso ao investimento social privado no Brasil, a partir do olhar das periferias. Para isso, realiza pesquisas e articulações, chamando a atenção dos setores ligados à filantropia no Brasil. Para o coordenador, esse é um assunto urgente, uma vez que a cultura de doação também pode ser uma ferramenta de manutenção de desigualdades.

“O repasse do recurso privado no Brasil ainda é alocado majoritariamente no sudeste, em ONGs lideradas por pessoas brancas, da classe média alta e que não necessariamente têm trabalhos efetivos voltados para a periferia. Lembrando que a periferia é o motor para a transformação social no Brasil. Quando essas ONGs possuem muito financiamento em contraposição aos coletivos da periferia, que sobrevivem com menos de R$ 5 mil por ano, temos um processo de manutenção das desigualdades”, afirma.

A receita das organizações periféricas citada pelo coordenador é um dos dados trazidos pela pesquisa da Pipa. Perguntados sobre o montante em doações recebidas em um ano, 31% dos gestores afirmaram que a organização contou com menos de R$ 5 mil; 24% disseram ter recebido de R$ 5 mil a R$25 mil; 17% de R$25 mil a R$100 mil e 15% não receberam recursos. Se somadas aquelas que não receberam nada às que obtiveram o menor valor, o resultado é que quase a metade das organizações pesquisadas (46%) receberam menos de 4 salários mínimos em 12 meses.

Por outro lado, essas mesmas organizações que recebem tão pouco do investimento social privado, são justamente aquelas que geram profundo impacto nos territórios periféricos. De acordo com a pesquisa, 21% das iniciativas atingem um público de 10 a 50 pessoas, enquanto 19% atendem de 250 a 1000 pessoas. Outros 17% atendem de 50 a 100 beneficiários. Na entrevista realizada com a comunidade impactada por esses projetos não foram raras frases como: “Governo nenhum faz por nós e por nossos filhos o que eles fazem”. 

Gelson lembra que isso reforça uma perspectiva histórica de atuação da população negra e periférica nas ações de responsabilidade social. A própria pesquisa cita isso na introdução, lembrando as irmandades religiosas negras, que são exemplo de associativismo negro e da luta de um povo que sempre soube administrar recursos a partir da própria resistência. 

“Tem muita gente que já está fazendo esse trabalho de amparo social há muito tempo com seus próprios recursos. E está dando certo porque tem que dar certo, por ser uma questão de vida. O que precisamos é de uma filantropia com um compromisso responsável com as periferias. Uma filantropia decolonial em que as  grandes riquezas são descentralizadas e potencializadas na periferia”, conclui.

Barreiras para acesso aos recursos

A pesquisa também mostrou algumas das principais dificuldades dos coletivos periféricos para acessar o investimento social privado. No que se refere ao recurso vinculado a editais, as barreiras estão ligadas principalmente à alta competitividade, à restrição e à burocracia desse modelo de financiamento. O estudo traz uma análise sobre isso, destacando que a dificuldade não é falta de conhecimento dos gestores para concorrer aos editais, mas ausência de outros recursos e até condições específicas da realidade periférica, que os impedem de acessar esse tipo de financiamento.

“As organizações sabem como acessar, contudo, não possuem recursos pessoais para tal, na medida em que funcionam a partir do voluntariado e com funcionários desempenhando outras atividades produtivas. Ao não considerar esse fato, o sistema de financiamentos tradicional acaba por naturalizar e reproduzir as desigualdades de raça, classe e gênero já enfrentadas pelos projetos por meio da não contextualização das condições coletivas específicas enfrentadas”, afirma o estudo.

Ao exemplificar essa dificuldade com a burocracia de projetos vinculados a editais, Gelson cita detalhes como a prestação de contas. “Estamos falando de um projeto da periferia, então os envolvidos vão pegar um ônibus ou um mototáxi, por exemplo, que não dá nota para comprovar o gasto. A questão aqui é: precisamos de uma nova relação filantrópica de confiança. A periferia e a população negra sempre teve esse lugar da desconfiança na sociedade, mas historicamente é a gente que dá as respostas às questões sociais do país com o dinheiro do nosso bolso. Então, o que precisamos é de fortalecimento, a partir dessa relação de confiança”, afirma.

Outra questão evidenciada pelo estudo é a ausência de CNPJ dessas iniciativas, o que as impede de acessar recursos de filantropia. Das organizações ouvidas no estudo, 52% não possuem CNPJ próprio. Por outro lado, dos que não possuem CNPJ, 62% disseram que gostariam de alguma ajuda para formalização, por meio de assessorias, pois 95% compreendem a formalização como um caminho para acesso a recursos. 

Sobre isso a pesquisa traz a seguinte análise: “É importante avançar em estratégias de inclusão dessas iniciativas que compreendam suas situações jurídicas e as permitam captar recursos por meio de outras vias, sobretudo porque muitas dessas iniciativas não possuem membros permanentes, funcionando por meio do trabalho voluntário”. 

A coordenadora da pesquisa, Luana Batista, também fala sobre isso: “A vida urge no cotidiano, ou eles garantem a qualidade de vida dos seus ou eles criam CNPJ. E temos um paradoxo aqui colocado, para o CNPJ requer tempo, recurso e fortalecimento institucional e é exatamente por não ter nada disso é que não se tem o CNPJ. Como garantir recursos para quem ainda não conseguiu a regularização fiscal?”, questiona.

Gelson explica que é possível pensar em alternativas para esse problema, sendo uma delas, por exemplo, a oferta do financiamento junto com o amparo para a regularização do coletivo que será beneficiado. Dessa forma, as organizações não seriam eliminadas sem chances de ao menos concorrer. Ele destaca, entretanto, que as soluções ainda precisam ser construídas coletivamente e que a pesquisa é apenas o começo desse movimento que precisa ser abraçado pelo setor ligado à filantropia no Brasil. 

“O que a gente precisa entender a partir dessa pesquisa é que o modelo da filantropia atual não está funcionando. Questionar isso é o começo. Aí, quando essa questão virar uma agenda, então as soluções serão construídas”, frisa.

Texto: Thaíne Belissa

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